A eleição de Donald Trump como presidente dos
EUA e o processo de saída do Reino Unido da União Europeia colocam em
xeque a globalização
Noite de 8 de novembro de 2016, Estados
Unidos (EUA). Após o fechamento das seções eleitorais, era chegada a
hora da apuração dos votos. Em algumas horas, o mundo iria conhecer quem
seria o novo líder da maior potência econômica e militar pelos próximos
quatro anos. Se as eleições presidenciais nos EUA já chamam a atenção
de todo o planeta, aquela votação em particular tinha um atrativo a
mais: a candidatura de Donald Trump pelo Partido Republicano.
O rico empresário, que fizera fortuna no ramo imobiliário, é afeito
ao mundo das celebridades, sendo mais conhecido como apresentador do
reality show O Aprendiz do que por suas posições políticas. Havia
entrado na disputa como franco-atirador, desafiando até mesmo as
principais lideranças de seu partido para sair como candidato.
Do outro lado da disputa estava Hillary Clinton, do Partido
Democrata. Mulher do ex-presidente Bill Clinton, Hillary tinha no
currículo a passagem por expressivos cargos públicos como senadora e
secretária de Estado – credenciais que ajudavam a mantê-la sempre como
favorita nas pesquisas eleitorais.
A possibilidade de o desafiante republicano ocupar a Casa Branca
parecia remota. Sem apoio em seu partido, bancou boa parte da campanha
com recursos próprios. Além disso, a candidatura de Trump foi cercada de
escândalos. Declarações contra mexicanos e muçulmanos e o vazamento de
um áudio no qual dizia impropérios sobre como tratar uma mulher,
renderam-lhe acusações de ser xenófobo e misógino. Sua campanha não
naufragou por pouco.
Mas, quando o mundo começou a acompanhar em tempo real a apuração dos
votos, ficou evidente que a disputa seria acirrada. Nas primeiras horas
do dia 9 de novembro veio o anúncio: Donald Trump, de 70 anos, havia sido eleito presidente dos EUA.
A vitória do republicano deixou o mundo estupefato.
Isso porque algumas de suas promessas de campanha, se colocadas em
prática, teriam o efeito de indispor os EUA com os governos de diversas
nações. Trump disse que iria construir um muro na fronteira sul do país,
para impedir a entrada de imigrantes ilegais vindos do México. Declarou
que barraria a entrada de refugiados, especialmente muçulmanos. Ainda
ameaçou iniciar uma guerra comercial com a China e rever a participação
dos EUA em acordos de livre-comércio.
Também anunciou que gostaria de restringir a
abrangência das parcerias militares com aliados históricos, como Japão,
Coreia do Sul e Arábia Saudita. Além disso, é crítico da Otan, a aliança
militar que os EUA mantêm com as nações da Europa Ocidental
principalmente.
São promessas que representam um desafio ao paradigma da
globalização. Aquela ideia de um mundo integrado, em que prevalecem o
livre movimento de pessoas, mercadorias e capitais, encontrou um
desafiante disposto a romper com essas conexões.
“America First”
Em qualquer disputa eleitoral, a insatisfação com a situação
econômica costuma abrir espaço para o avanço de novatos na política.
Desde a crise econômica de 2008, quando o mundo todo foi abalado pelo
estouro da bolha imobiliária, os EUA tentam se recuperar. Sob a
presidência de Barack Obama (2009-2017), o país até retomou o
crescimento econômico e o nível de emprego, mas a renda permaneceu
estagnada. Foi nesse cenário que a candidatura de Trump sacudiu as
eleições norte-americanas. Enquanto Hillary era vista como a
continuidade do sistema político vigente, o establishment, Trump surgia como o forasteiro impetuoso, que disparava pesadas críticas e até xingamentos aos políticos que conduziam o país.
Para além do personagem polêmico, Trump foi capaz de
seduzir uma expressiva fatia do eleitorado interessado em sua
plataforma política. Um dos lemas de sua campanha foi “America First”,
algo como “América em primeiro lugar”. Essa marca que Trump quer
imprimir em seu governo simboliza a ênfase em medidas para reforçar a
posição econômica do país diante de outras nações.
Um exemplo: atribui-se o fechamento de diversas
vagas de operários norte-americanos à assinatura do Acordo de Livre
Comércio da América do Norte (Nafta), o bloco econômico formado por EUA,
Canadá e México. Esse tratado permitiu que empresas norte-americanas se
transferissem para o México e empregassem a mão de obra local, mais
barata. Durante a campanha, Trump disparou contra o Nafta e prometeu
intimar os executivos das empresas norte-americanas a abrir vagas nos
EUA, em vez de levar a produção e os empregos para outras nações.
Quem votou em Trump
A análise do perfil dos eleitores de Trump ajuda a compreender a
estratégia do republicano e as razões que o levaram à vitória. De modo
geral, é composto de homens brancos, mais velhos, sem formação
universitária. Trata-se de um dos estratos da população norte-americana
que mais foi afetado economicamente nos últimos anos, com o achatamento
da renda e a falta de perspectivas de ascensão social.
Geograficamente, a insatisfação desses eleitores pode ser explicada
pela alteração do perfil eleitoral em seis estados nos quais os
democratas haviam vencido em 2012 e que deram maioria a Trump em 2016:
Flórida, Wisconsin, Michigan, Iowa, Ohio e Pensilvânia. Bastou isso para
que garantisse os delegados de que precisava para se tornar presidente.
Os cinco últimos fazem parte do chamado rust belt (“cinturão da
ferrugem”), que abriga antigas áreas industriais em que há atualmente
altos níveis de desemprego, causados pelo fechamento de indústrias.
Como a eleição nos EUA é indireta, a vitória de Trump nesses
estados-chave carimbou o triunfo do republicano, mesmo tendo menos votos
populares do que Hillary. Com essa estratégia, o empresário buscou
atingir uma significativa parcela da população constituída por cidadãos
para os quais a globalização trouxe consequências indesejáveis, como a
perda de empregos industriais. Foi o suficiente para garantir os votos
que o levariam à Casa Branca.
Eleições presidenciais nos EUA são indiretasNas
eleições presidenciais de 2016 nos EUA, Hillary Clinton obteve cerca de
2,9 milhões de votos a mais do que Donald Trump em nível nacional. Ela
venceu no voto popular, mas não levou. Isso porque a eleição para
presidente é indireta. Os eleitores não votam nos candidatos, mas sim em
delegados que formam um Colégio Eleitoral encarregado de definir o
presidente.
Cada estado é representado por certo número de delegados, proporcional à sua população. O Colégio Eleitoral de 2016 foi composto de 538 delegados. Em quase todos os estados (exceto Maine e Nebraska), quem vence no voto popular leva todos os delegados ao Colégio Eleitoral, mesmo que a sua vitória tenha sido por poucos votos de diferença. Por causa disso, um candidato pode ter um número maior de votos populares, nacionalmente, e eleger menos delegados ao Colégio Eleitoral. Foi o que aconteceu com Hillary, que não obteve delegados suficientes para se eleger.
Cada estado é representado por certo número de delegados, proporcional à sua população. O Colégio Eleitoral de 2016 foi composto de 538 delegados. Em quase todos os estados (exceto Maine e Nebraska), quem vence no voto popular leva todos os delegados ao Colégio Eleitoral, mesmo que a sua vitória tenha sido por poucos votos de diferença. Por causa disso, um candidato pode ter um número maior de votos populares, nacionalmente, e eleger menos delegados ao Colégio Eleitoral. Foi o que aconteceu com Hillary, que não obteve delegados suficientes para se eleger.
Reino Unido fora da União Europeia
Antes da vitória de Trump, os alicerces da globalização já haviam
sofrido os primeiros abalos na Europa. Em plebiscito realizado em junho
de 2016, os britânicos votaram pela saída do Reino Unido da União
Europeia (UE), o maior e mais importante bloco econômico do planeta. O
chamado Brexit (contração das palavras inglesas “Britain” e ‘”exit”,
algo como “saída britânica”) teve o voto de 17,4 milhões de britânicos
(51,9%), ante 16,1 milhões (48,1%) que preferiam permanecer na UE.
Ao virar as costas para a UE, os britânicos anunciam que a
participação no maior bloco econômico do planeta não lhes traz
benefícios, em um sonoro “não” ao processo de globalização. Por trás da
decisão dos britânicos está a insatisfação com os mecanismos de
integração da UE, que, segundo seus críticos, impõem restrições à
autonomia e ferem a soberania das nações. Os eurocéticos britânicos são
contra a imigração por achar que os estrangeiros representam uma
concorrência em um mercado de trabalho saturado. E questionam os
repasses financeiros que os países-membros devem fazer à UE.
Por isso, não surpreende que o perfil demográfico dos britânicos que
votaram a favor do Brexit seja bem parecido com o dos eleitores de
Trump. Ou seja, de modo geral, trata-se de cidadãos britânicos mais
velhos, do sexo masculino, sem nível superior e de renda média. Entre
operários e desempregados, o voto também foi majoritariamente pela saída
do bloco – novamente, extratos da população mais afetados pela crise
econômica.
Interessante também é notar como a distribuição do
voto variou geograficamente. O Reino Unido é composto de quatro unidades
políticas. Na Inglaterra e no País de Gales prevaleceram o voto pelo
Brexit. Já a Escócia e a Irlanda do Norte votaram expressivamente a
favor da permanência na UE. Esse resultado expôs a forte divisão
política no país. Desapontado com o Brexit, o governo local da Escócia
cogita realizar um novo plebiscito, desta vez para decidir se deve
permanecer ou deixar o Reino Unido. Em 2014, os escoceses já haviam ido
às urnas e decidiram ficar no Reino Unido. Mas, desta vez, a
insatisfação com a saída da União Europeia pode estimular uma debandada
escocesa.
Logo após o plebiscito, o primeiro-ministro conservador David
Cameron, que fez campanha pela permanência na UE, renunciou e foi
substituído pela ex-ministra do Interior, Theresa May, que ficou
responsável por encaminhar a retirada do bloco. O início da separação
está previsto para março, quando o Reino Unido deverá acionar o Artigo
50 do Tratado de Lisboa da UE, dando início formal à saída. De acordo
com as regras do bloco, o processo deve durar até dois anos.
Não por acaso, Trump comparou sua vitória ao Brexit, por terem o
mesmo sentido de defesa nacionalista dos interesses do país. Num
primeiro momento, tanto no Reino Unido quanto nos EUA, os eleitores
responsáveis pelos resultados surpreendentes foram considerados
xenófobos, racistas ou simplesmente ignorantes. Mas há também algo mais
profundo: um recado do homem comum, que não se vê representado pelos
políticos e instituições atuais. São pessoas que acham que há algo de
errado na globalização, e deixaram isso evidente por meio de seu voto.
OS PILARES DA GLOBALIZAÇÃO
Funcionário limpa fachada do Mc Donald’s em Pequim, na capital chinesa (Kevin Lee/)
Caracterizado por um mundo integrado pelo comércio, com menos
intervenção estatal e maior flexibilidade no mercado de trabalho, o
fenômeno é mais antigo do que parece.
A
globalização, tão contestada por Donald Trump e pelos partidários do
Brexit, é entendida como o processo de integração entre povos, empresas,
governos e mercadorias ao redor do planeta. Um mundo globalizado é
aquele em que eventos políticos, econômicos, culturais e sociais estão
interconectados e onde um acontecimento em um lugar tem a capacidade de
ecoar por outros cantos do globo.
Suas origens remontam aos séculos XV e XVI, com o
início da expansão ultramarina europeia. A descoberta de novas terras e
rotas comerciais permitiu a formação de enormes impérios coloniais na
Europa. Posteriormente, o acúmulo de riquezas forneceu a base para a
Revolução Industrial no fim do século XVIII, que, com o tempo,
desenvolveu o trabalho assalariado e o mercado consumidor.
As descobertas científicas e as invenções provocaram
enorme expansão dos setores industrializados e ampliaram o mercado para
a exportação de produtos. No fim do século XIX surgiram as grandes
empresas multinacionais. O século seguinte verá o fortalecimento dessas
corporações, bem como a consolidação dos Estados Unidos (EUA) como a
nação capitalista mais poderosa do planeta.
O Neoliberalismo
Pode-se afirmar que a atual fase da globalização tem como pilares
econômicos o neoliberalismo. Trata-se do conjunto de medidas adotado
pela primeira-ministra Margaret Thatcher (1925-2013) no Reino Unido e
pelo presidente norte-americano Ronald Reagan (1911-2004) a partir dos
anos 1980.
O neoliberalismo consolidou-se como o sistema
econômico dominante a partir dos anos 1990, com o fim da Guerra Fria. De
modo geral, o ideário neoliberal é constituído por alguns pontos
centrais:
• abertura comercial e financeira para promover o livre-comércio e
ampla possibilidade de atuação das empresas em nível internacional;
• diminuição do papel do Estado na economia, por meio de privatizações, e fim do Estado de Bem-Estar Social (welfare state) vigente principalmente na Europa, com o corte nos gastos públicos e na oferta de serviços sociais pelo governo;
• desregulamentação financeira, ou seja, deixar o mercado livre para
ditar preços e condições de atuação, sem a interferência do Estado;
• flexibilização do mercado de trabalho. As
reivindicações trabalhistas são encaradas como obstáculos ao crescimento
econômico; propõe uma nova divisão internacional do trabalho, com
migração de empregos industriais para os países em desenvolvimento.
OMC e blocos econômicos
Um elemento central da globalização é o livre-comércio, ou seja, a
criação de um sistema em que bens e serviços são comercializados sem
restrições tarifárias. Nesse sentido, o papel da Organização Mundial do
Comércio (OMC) na expansão comercial foi fundamental, principalmente na
primeira década após sua criação, em 1995. Seu objetivo principal é
estimular a abertura das economias nacionais e eliminar o chamado
protecionismo ± quando um país impõe taxas ou outras barreiras
comerciais para restringir a importação de produtos e proteger sua
própria produção interna.
Outro pilar importante da globalização e do
livre-comércio é a formação de blocos econômicos. Sob a economia
globalizada, esses grupos reforçam a tendência de abrir as fronteiras
das nações ao livre fluxo de capitais, ao reduzir barreiras
alfandegárias e coibir práticas protecionistas e regulamentações
nacionais.
A formação de blocos econômicos acelerou o comércio mundial. Antes,
qualquer produto importado chegava ao consumidor com um valor
significativamente mais alto, em função das taxações impostas ao cruzar a
alfândega. Os acordos entre os países reduziram e em alguns casos
acabaram com essas barreiras comerciais.
Existem quatro modelos básicos de blocos econômicos:
1. Zona de livre-comércio, em que há redução ou eliminação de tarifas alfandegárias. Exemplo: Nafta;
2. União aduaneira, que, além de abrir o mercado interno, define regras para o comércio com nações de fora do bloco. Exemplo: Mercosul;
3. Mercado comum, com livre circulação de capitais, serviços e pessoas;
4. União econômica e monetária, em que os países adotam a mesma política de desenvolvimento e uma moeda única. Exemplo: União Europeia.
As contestações a esses fundamentos da globalização
sempre existiram. Mas, ironicamente, coube ao Reino Unido e aos EUA
liderar os mais expressivos movimentos a desafiar a atual ordem –
justamente as duas nações que mais defenderam os valores neoliberais.
UMA NOVA ORDEM ANTIGLOBAL
Crise no livre-comércio, perda de postos de trabalho nos países
desenvolvidos e manutenção da desigualdade social levam a
questionamentos sobre a globalização
No início dos anos 1990, o mundo parecia ter entrado
em uma fase de amplas oportunidades para todos. Com o fim da Guerra
Fria e a consolidação de uma Nova Ordem Mundial, sob a liderança
hegemônica dos Estados Unidos (EUA), nada parecia deter o processo de
globalização e as novas possibilidades de desenvolvimento que ela
prometia. Sem o antagonismo comunista representado pela União Soviética
(URSS), o capitalismo passou a reinar absoluto no planeta.
As políticas neoliberais deram a sustentação
econômica à globalização, enquanto o avanço da tecnologia da informação,
particularmente da internet, tornou viável a interconexão e aproximação
entre as diversas nações. Ao longo do tempo, porém, esse sistema
começou a mostrar algumas fissuras. Ao contrário do que pregavam alguns
dos principais teóricos da globalização, o aumento da integração mundial
e a ampliação do comércio não promoveram o bem-estar geral dos
indivíduos e a redução das desigualdades entre as nações. A globalização
fez alguns vencedores, mas deixou muitos perdedores pelo caminho. E é
nesse fosso de desigualdade que começam a surgir as reações ao sistema
de integração econômica mundial.
Crise de 2008
Os sinais mais evidentes de que havia algo de errado com a
globalização vieram em 2008, com o estouro da bolha imobiliária nos EUA.
Começava ali a maior crise econômica no mundo desde a Grande Depressão
dos anos 1930.
A origem da crise está ligada aos empréstimos que os
bancos norte-americanos concederam a milhões de clientes para comprar
suas casas, entre 2002 e 2008. Mesmo sabendo que muitas pessoas não
tinham boa avaliação como pagadores, os bancos autorizaram a liberação
desses créditos.
Essa decisão só foi possível devido a um efeito importante da globalização que é a desregulamentação do mercado financeiro.
Antes o governo impunha restrições para a concessão de empréstimos, uma
medida que servia para dar segurança ao sistema bancário. Sem essas
regras, os bancos ficaram livres para conceder crédito e ampliar seus
lucros. Como era fácil obter empréstimos e os juros estavam baixos, a
procura por imóveis se intensificou, elevando os preços.
Posteriormente, quando os juros subiram, as prestações dos
financiamentos dos imóveis ficaram mais caras e muitos compradores
pararam de pagar. Isso provocou uma reação em cadeia que afetou todo o
sistema financeiro norte-americano. As relações de interdependência
nesta era de economia globalizada trataram de espalhar a crise pelo
globo, afetando dos países ricos às nações em desenvolvimento.
A resposta dos governos para a crise tornou ainda
mais evidente os desequilíbrios provocados pela globalização. Os EUA e
os integrantes da União Europeia (UE) injetaram trilhões de dólares para
socorrer os bancos utilizando dinheiro público proveniente dos impostos
pagos por toda a população. O argumento era o de que, sem isso, haveria
uma quebra geral, com consequências piores para o mundo inteiro. Em
diferentes graus, outras nações afetadas seguiram a mesma receita.
A medida, contudo, não foi capaz de reativar de forma completa a
economia e ainda por cima deixou vários países endividados. A
consequência é que os governos cortaram ainda mais seus gastos em
serviços públicos e benefícios sociais. Tudo isso acelerou o desmantelamento do já enfraquecido Estado de Bem-Estar Social (welfare state).
Neste modelo, que surgiu na Europa após a II Guerra Mundial, o Estado
se compromete a garantir padrões mínimos de saúde, educação e habitação,
concebendo a proteção social como um direito dos cidadãos.
Livre-comércio na mira
A recessão causada pela crise de 2008 levou diversos países a rever
suas políticas econômicas. Para proteger os empregos e a produção local,
muitos governos passaram a questionar o livre-comércio, mais especificamente os benefícios dos blocos econômicos.
Nos anos 1990, período que coincide com os primeiros anos dessa fase
mais recente da globalização, surgiram diversos blocos econômicos. O
Tratado de Livre-Comércio da América do Norte (1995), a UE (1992) e o
Mercosul (1991) são alguns exemplos. A ideia era que, a partir da
redução ou da eliminação de tarifas de importação de diversos bens e
serviços, as nações pertencentes ao mesmo bloco intensificassem as
trocas comerciais entre si, em um processo que ampliaria a geração de
empregos e promoveria o desenvolvimento.
No entanto, a abertura comercial expõe o país à
competitividade típica do capitalismo e do liberalismo econômico. Ao
eliminar as barreiras à importação, os bens que entram no país disputam
mercado com os produtos nacionais. Aquele que tem maior vantagem
competitiva, seja por cobrar menos impostos, por pagar baixos salários
ou por dispor de um câmbio mais favorável para as exportações, vai se
dar melhor na conquista pelo mercado consumidor. E, dependendo do tipo
de acordo comercial, a entrada de produtos estrangeiros pode afetar todo
um setor da economia de um país.
Fora do TPP
Ainda durante a campanha presidencial, Trump identificou como uma das
fragilidades econômicas do país as relações comerciais com o resto do
mundo. Segundo o novo presidente, sua gestão dará prioridade a acordos
bilaterais “justos”, em vez de blocos econômicos, com o objetivo de
levar de volta aos EUA empregos e indústrias.
Por isso, não foi nenhuma surpresa que uma das primeiras ações de
Trump como presidente tenha sido a assinatura de um decreto que retira o
país do Acordo Transpacífico de Cooperação Econômica (TPP, na sigla em
inglês). Criado em fevereiro de 2016, o TPP nasceu para se tornar a
maior área de livre-comércio do mundo, abrangendo 12 nações com uma
população somada de 800 milhões de pessoas e responsáveis por 40% do
Produto Interno Bruto (PIB) mundial. Entre seus membros estavam duas das
três maiores economias do mundo ± EUA e Japão.
Com uma canetada, Trump retirou os EUA do TPP e praticamente
inviabilizou o acordo, que terá dificuldades para ser levado adiante sem
a presença norte-americana. Dessa forma, Trump desferiu o maior golpe
contra o livre-comércio até agora, sepultando um tratado que iria
diminuir ou até mesmo eliminar cerca de 18 mil tarifas de importação,
abrangendo de commodities agrícolas até bens industrializados.
Divisão Internacional do Trabalho
Durante a assinatura do decreto que retirou os EUA do TPP, Trump
justificou: “Devemos proteger nossas fronteiras dos estragos causados
por outros países que fabricam os nossos produtos, roubam nossas
empresas e destroem nossos postos de trabalho”.
Essa declaração tem como alvo as novas relações de trabalho que
surgiram no atual estágio da globalização. Principalmente a partir dos
anos 1990, houve uma mudança significativa na Divisão Internacional do Trabalho (DIT), como é chamada a distribuição das atividades produtivas e dos serviços entre os países do mundo.
A globalização facilitou a livre circulação de bens e capitais, o que permitiu às multinacionais expandirem ainda mais sua atuação ao redor do mundo.
Diante da maior competitividade comercial imposta pelo neoliberalismo,
essas empresas começaram a espalhar sua cadeia produtiva para os
chamados países periféricos com o objetivo de reduzir custos. Suas
fábricas passaram a ser montadas em nações como China, México, Coreia do
Sul, Tailândia e o próprio Brasil, atraídas pela maior oferta de
matéria-prima e energia, mão de obra mais barata, isenções fiscais e
legislação trabalhista menos rígida. Exemplo disso é a Apple, que, a
partir de sua sede nos EUA, distribui seu processo produtivo por todo o
globo, utilizando trabalhadores da Europa, da África e da Ásia para
fabricar o iPhone.
O emprego nos EUA
É por isso que Trump chama o Nafta, o bloco econômico que inclui EUA,
México e Canadá, de “desastre”. O Nafta permite que empresas
norte-americanas se instalem no México para aproveitar os menores custos
de produção do vizinho latino-americano. No cerne de sua crítica está a
perda dos empregos na indústria norte-americana para os trabalhadores
mexicanos, que Trump promete agora recuperar. Uma revisão sobre a
participação dos EUA no Nafta já está em estudo pelo governo.
Em boa medida, a nova DIT e a integração comercial
propostas pela globalização geraram resultados econômicos distintos para
os povos das diferentes nações envolvidas nesse processo. Um estudo do
Banco Mundial mostrou que, entre 1988 e 2008, o extrato da população que
teve maior incremento na renda foram os trabalhadores de nações em
desenvolvimento, principalmente de China e Índia, e a elite financeira
dos países ricos. Em compensação, a classe média trabalhadora dos países
ricos, principalmente dos EUA e da Europa, tiveram as maiores perdas na
renda. Contudo, vale ressaltar que, apesar dos recentes avanços, os
salários dos trabalhadores chineses continuam bem abaixo da média do
trabalhador norte-americano. Enquanto a renda per capita no país asiático em 2015 era de 7.930 dólares ao ano, nos EUA o valor alcançava 55.980 dólares.
Outro efeito dessas mudanças no mercado de trabalho norte-americano é a transferência dos empregos, que migraram do setor industrial para o de serviços.
Se durante boa parte do século XX a indústria era o motor da economia
nos EUA e a principal geradora de emprego no país, a globalização
alterou esse perfil. O setor de serviços, que compreende atividades que
incluem comércio, transportes, saúde, educação, alimentação e
entretenimento, tornou-se o segmento que mais contrata funcionários nos
EUA. A gigante do setor varejista Walmart emprega 2,1 milhões de
funcionários, enquanto a empresa do setor industrial que mais contrata, a
HP, tem 324 mil funcionários.
O problema é que, apesar de empregar muitos
funcionários, o setor de serviço oferece salários menores. É verdade que
empresas como a Apple contam com uma equipe de designers e
programadores muito bem pagos. Mas a maioria dos empregados no setor de
serviços, como garçons, vendedores e professores, recebe bem menos e tem
poucas perspectivas de ascensão profissional.
Protecionismo
Com o objetivo de defender os empregos na indústria,
ainda durante sua campanha presidencial, Trump atacou duramente
empresas dos EUA que se mudam do país, em busca de custo mais baixo do
trabalho e vantagens fiscais, e com isso eliminam vagas dos
trabalhadores norte-americanos. Entre as medidas que prometeu adotar,
está a taxação em até 45% para os produtos dessas empresas que vierem do
México e da China.
Além disso, a política econômica esboçada por Trump
promete sacudir alguns paradigmas da ordem global. Ao defender o
protecionismo, o presidente norte-americano sinaliza com medidas para
erguer barreiras à importação, com o objetivo de garantir que os
produtos norte-americanos tenham um mercado assegurado em seu próprio
país.
Sabe-se, porém, que práticas protecionistas nunca deixaram de
existir. Historicamente, muitas nações que defendem uma posição de
livre-comércio puseram em prática políticas protecionistas, com o
objetivo de assegurar mercado para sua produção doméstica. Países em
desenvolvimento denunciam há anos que as grandes potências preconizam
formalmente a liberdade de circulação de bens e serviços, mas, na
prática, mantêm subsídios e outras políticas que favorecem seus
produtores, prejudicando os de outras nações.
Além disso, a adoção de práticas protecionistas não
seria exclusividade dos EUA. As barreiras ao comércio têm crescido no
mundo todo desde a eclosão da crise de 2008, como uma forma de defender
os empregos locais. O problema é que, se a maioria dos países eleva suas
taxas de importação, uma consequência óbvia é a retração do comércio em
nível mundial – afinal, as exportações tendem a cair também. Órgãos
como a OMC creditam a lenta recuperação da economia mundial a essa onda
protecionista.
O comércio com a China
A percepção de que a China está levando vantagem
neste grande jogo da globalização levou Trump a apontar o país asiático
como o principal rival a ser combatido na arena econômica. As duas
maiores economias do mundo, entretanto, mantêm uma relação estreita. A
entrada da China na OMC, em 2001, ampliou as relações comerciais da
China com o mundo e, em especial, com os EUA. Mas os norte-americanos
exportam para a China produtos num valor bem menor do que o de suas
importações dos chineses. Ou seja, a balança comercial dos EUA com a
China é deficitária. Somente em 2016, o saldo negativo atingiu 347
bilhões de dólares.
Mas qualquer medida agressiva do presidente norte-americano poderá
provocar retaliações chinesas. Numa eventual guerra comercial, analistas
citam a possibilidade de a China reduzir as compras da soja dos EUA ou
de recusar os aviões da Boeing, cujas vendas no país atingiram o valor
de 15 bilhões de dólares em 2015.
Diante das incertezas trazidas para a economia mundial pela nova
administração norte-americana, um dado curioso é a defesa da
globalização e do livre-comércio feita pelo presidente chinês, Xi
Jinping, no Fórum Econômico Mundial de Davos, em janeiro. Sem citar
Trump, o dirigente da China contrapôs-se de forma cabal à sua política. E
o mundo assiste ao governante do mais importante país de regime
formalmente comunista defender uma ordem econômica que o presidente da
maior nação capitalista parece interessado em chacoalhar.
Da teoria à prática
De modo geral, as principais propostas de Trump na esfera econômica
questionam os fundamentos da ordem globalizada vigente. Mas, se o
diagnóstico do presidente norte-americano coincide com a maior parte das
análises sobre os desequilíbrios provocados pela globalização, o
remédio proposto para esses males é motivo de controvérsia.
Para muitos analistas, a proposta de trazer
indústrias de volta aos EUA é de aplicação difícil, ou até impossível.
Seria necessário descumprir a legislação internacional à qual os EUA
estão submetidos, como a da OMC. Ainda que se resolvesse esse ponto,
estaria criado um grande problema, porque as empresas teriam de elevar o
preço de venda dos produtos, provocando inflação. Isso porque o custo
de fabricação nos EUA, principalmente por causa dos salários mais altos,
é muito maior do que nos países para os quais as fábricas foram
transferidas. A elevação de preços para os consumidores finais levaria a
uma queda nas vendas, com reflexos diretos no crescimento econômico do
país.
Há também a questão da automação: diversas
funções executadas até poucos anos atrás por operários norte-americanos
podem hoje ser cumpridas por robôs. Isso quer dizer que, mesmo se Trump
conseguir trazer as empresas de volta aos EUA, isso não significaria a
abertura de vagas em número tão expressivo.
Além disso, as vagas criadas na indústria são bem
diferentes das existentes há 20 anos. As funções atuais exigem
conhecimento maior da tecnologia de informação, nas quais o trabalhador
passa a atuar diante de uma tela de computador, em vez de operar um
forno quente, por exemplo. Há, portanto, necessidade de melhorar a
qualificação da mão de obra para operar os novos equipamentos.
Curioso notar como os EUA se voltam contra os princípios de uma ordem
econômica que sempre defendeu. Críticas de anos atrás sobre como a
globalização alijava as nações mais pobres do processo de integração
eram ignoradas por sucessivos governos norte-americanos. A percepção de
que esses desequilíbrios também atingem sua população leva o país agora a
querer mudar as regras do jogo.
Mas o fato é que, depois de décadas de Nafta e de OMC, as relações
dos EUA com o México, com a China e com outros parceiros comerciais
passaram a estar integradas em vários aspectos. Essa interdependência
torna difícil a operação de desmontar as engrenagens do sistema, tal
como Trump almeja. A questão que se coloca é se a tentativa de romper os
elos dessa cadeia não provocaria mais estragos do que benefícios à
economia dos EUA – e do mundo.
Os ricos ainda mais ricos
A
globalização gerou enormes desigualdades econômicas e sociais. É o que
afirma a organização não governamental Oxfam, com base em dados do banco
de investimento suíço Credit Suisse. A concentração de riquezas atingiu
o maior nível da história em 2015: 1% da população mundial detém 50% de
toda a riqueza do planeta. Essa parcela mais rica teve aumento de renda
182 vezes maior do que os 10% mais pobres, no período entre 1988 e
2011.
Em outro dado revelador das desigualdades, a Oxfam aponta que os oito homens mais ricos do mundo têm o mesmo patrimônio que 3,6 bilhões de pessoas, a metade mais pobre do planeta.
Essa disparidade é resultado de um sistema vantajoso para poucos eleitos em detrimento da maioria, que desencadeia um círculo vicioso: quem tem menos recursos vive em condições mais precárias de saúde, habitação e educação. Isso, por sua vez, resulta em menores oportunidades de conseguir trabalho com remuneração adequada.
Em outro dado revelador das desigualdades, a Oxfam aponta que os oito homens mais ricos do mundo têm o mesmo patrimônio que 3,6 bilhões de pessoas, a metade mais pobre do planeta.
Essa disparidade é resultado de um sistema vantajoso para poucos eleitos em detrimento da maioria, que desencadeia um círculo vicioso: quem tem menos recursos vive em condições mais precárias de saúde, habitação e educação. Isso, por sua vez, resulta em menores oportunidades de conseguir trabalho com remuneração adequada.
Fonte:https://guiadoestudante.abril.com.br/especiais/donald-trump-e-a-crise-da-globalizacao/ - acesso em 19/12/2018.